domingo, 16 de maio de 2021

A Casa

Eu nasci de um lindo sonho. Um desejo. Foram muitas noite e dias de planeamento, de sacrifico. Comecei a receber as minhas pessoas, ainda estava a meio da minha existência. Com carinho e dedicação fizeram de mim um lar.

Acolhi no meu regaço cinco pessoas, um pai e uma mãe e trouxeram três crianças com eles. Duas adolescentes e uma mais pequena. Acompanhei também o crescimento delas. Elas sentiam em mim um porto de abrigo, e eu sentia nelas o meu futuro.

Um dia, uma a uma das minhas meninas, foram saindo de casa. Vi o pai e a mãe chorarem, não de tristeza, mas de alegria. As miúdas haviam crescido e estavam já umas mulheres. Saíram para começar uma vida, junto de seus maridos, nas suas próprias casas. Os pais ficaram sozinhos. Mas tinham-se um ou outro como sempre acontecera. E logo não tardaram os primeiros netos e eu receber no meu colo aqueles pequenos seres, tão lindos...

Durante muito tempo, as filhas saiam e regressaram. A vida é feita de coisas boas e más e nas más elas sempre procuraram o porto de abrigo. E eu ficava feliz por as ter aqui. Os pais ficavam com o coração apertado, queriam a felicidade delas, e aliviados quando elas superavam e seguiam em frente das más situações.

Mas o que a vida tem de previsível é a sua imprevisibilidade e uma das piores coisas aconteceu. Do nada, num instante, a mãe morre de repente e eu passei por dias negros, cheios de tristeza, choro e sofrimento. Vi as miúdas chorarem, os netos chorarem, o marido chorar...

E foi assim que nunca mais senti alegria por aqui. Os sorrisos apagaram-se, e a tristeza passou a ser permanente. Até há chegada daquela mulher estranha, que passou a habitar aqui. O marido tinha uma nova esposa. As miúdas vieram cada vez menos e eu senti que elas mesmas sentiam, que eu deixara de ser o porto de abrigo. Não me viam mais com seus olhos ternurentos. Eu trazia más lembranças e com a chegada desta estranha a situação piorou.

Com as miúdas ausentes, ficaram os dois aqui e simplesmente deixaram de cuidar de mim. Eu sentia a melancolia que me rondava e o desespero e de certa forma, tornei-me num local de desova de tristeza, solidão, medo e desespero. Aos poucos a nuvem cinzenta imergiu e ficou permanente sob mim. A todo o tempo. Alegria simplesmente nunca mais voltou. 

Hoje sou uma mera coisa, tal como o pai que foi perdendo a noção da sua existência. A estranha não abre minhas janelas, não cuida do meu jardim. Não cuida de mim. Sou um punhado de paredes, sem alma, carregada de teias de aranha, pó e sujidade. Esta estranha, que sabe que eu nunca serei para ela um porto de abrigo, odeia-me tanto, pelo que represento. Eu conto com as minhas pessoas, as que eu vi crescer, para lutar por mim, porque as lembranças continuam presentes na mente e coração de quem realmente me estima. As miúdas sabem o tamanho da batalha que as espera, mas com força e determinação, sobre as lembranças que criaram em crianças, eu sei que elas vão conseguir...

Quero voltar a ser um porto de abrigo. Um lar. Quero voltar a ter amor dentro das minhas portas. Quero que voltem a abrir minhas janelas e que o sol entre e brilhe. Quero voltar a sentir o sorriso e a felicidade em mim. Quero poder dar minha proteção a quem em mim um dia olhou e viu mais do que uma simples casa. A quem um dia percebeu que eu era a realização de um lindo sonho.




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